1º - Os preparativos
Não, ninguém pense que é na base do amadorismo que se fazem manifestações e protestos.
O ajuntamento popular, o alevantamento espontâneo, a "luta continua" e "em cada esquina uma amigo", estão absolutamente ultrapassados.
Primeiro sensibiliza-se o povo, fazem-se convites e apelos. Põe-se uma carrinha a percorrer caminhos e vielas, de altifalante avariado, a debitar frases tipo "grande concentração em Lisboa contra o governo de corruptos". E pronto tá lançado o mote.
Fazem-se as inscrições, a viagem é grátis e sempre se vai a Lisboa.
Marca-se o ponto de encontro, a camioneta chega. Primeiro entram os farneis e depois os manifestantes.
A cada um é entregue um papel com o número do autocarro em que viajam e alguns números de telemóveis, para o caso de alguém se perder.
A malta vai, para a fazer chichi e comer qualquer coisita, volta a embarcar na camioneta e espera aí Lisboa que já estamos quase a chegar.
2º - A manifestação propriamente dita
A camioneta estaciona a cinco quilómetros do inicio da manif o que não dá muito jeito à terceira idade mas, pronto, se tem que ser assim, a malta vai.
De papel com o número do autocarro e com os telemóveis na mão, é dada a primeira indicação.
Vão todos atrás deste pano, primeiro as mulheres e depois os homens porque assim não há maneira de ninguém se perder.
O pano, esse objecto fundamental para qualquer protesto, dirá algo tipo "emprego sim, desemprego não", "a luta continua, governo para a rua", "trabalhadores de Braga solidários com Setúbal" (ao contrário, também fica bem) ou até slogans mais suaves como "Ermesinde a concelho" ou "Palestina Livre".
3º - As palavras de ordem
Convém, neste ponto, fazer um aparte para dizer que, com 200 mil pessoas a desfilar, é impossível conseguir que todas gritem as mesmas palavras de ordem ao mesmo tempo.
Assim, enquanto no início da marcha, se gritava "a luta continua", a meio, dizia-se "assim não pode ser trabalhar sem receber" e no final "25 deAbril sempre, fascismo nunca mais".
"Sócrates escuta, os professores estão em luta", "Sócrates escuta, os reformados estão em luta", Sócrates escuta, os estudantes estão em luta" ou algo completamente diferente, tipo, "Sócrates escuta, os trabalhadores estão em luta", foram das frases mais ouvidas.
Um verdadeiro hino à poesia popular, à arte da rima e uma sentida homenagem a António Aleixo e até, porque não, a Manuel Alegre que escreveu "O fado dos contentores".
4º - O regresso
Ai o regresso. Que saudades que eu já tenho de ouvir o povo e de caminhar dez quilómetros.
A festa contnua na camioneta. Que nunca se cale o rádio e que ninguém tire os sapatos.
Depois da meia-noite, a malta está em casa. Contente. Pronta para outra. Embora considere que o Sócrates até e "jeitosinho", que a culpa da crise é "dos americanos" e que a Ferreira Leite, essa sim, "é um desastre".
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